top of page
Buscar

Entrevistando Tio Maldanado — resenha crítica de Nefarious

  • carolinavanri
  • 5 de jan.
  • 4 min de leitura
ree

Ainda brincando de crítico de cinema, hoje quero falar sobre o, assim rotulado, filme de terror Nefarious (2023). A pausa explicativa é pertinente, pois um fã do gênero, ao se deixar enganar pela classificação equivocada, não apenas se frustraria em sua expectativa, como também faria do longa um alvo de chacota. Na verdade, Nefarious é um suspense sobrenatural de teor preventivo. Não estamos diante de uma obra-prima da sétima arte mas de um típico caso em que o valor da peça reside na mensagem — sendo assim, quem seria o destinatário?


A trama se desenrola ao longo de uma hora e meia, em que acompanhamos, na maior parte do tempo, um intenso diálogo entre um psiquiatra ateu e um sentenciado à morte que alega ser um demônio. Dr. James Martin tem poucas horas para diagnosticar Edward Wayne Brady, um assassino em série, como clinicamente louco ou são — sendo este o veredito, Edward será executado na cadeira elétrica antes mesmo do dia terminar. O demônio, que se apresenta como Nefarious, tenta convencer Martin de sua existência, enquanto provoca as crenças ideológicas do psiquiatra. Dessa forma, somos expostos a um diálogo repleto de temas controversos, como o aborto e a eutanásia, abordados sob o ponto de vista moral, e o roteiro manifesta clara oposição a tais práticas.


O filme é, sem dúvida, cristão — mais precisamente católico — e se inspira em Cartas de um diabo a seu aprendiz, do C. S. Lewis (1942). A principal diferença, porém, é que o “paciente” de “Tio Maldanado” ou “Vermelindo” aqui não é sequer um crente neófito. Apesar disso, prefiro assumir que o público-alvo do filme não seja os ateus, pois do contrário eu estaria subestimando a inteligência dos realizadores; Nefarious não funciona como peça evangelística. Além de que o apelo ao medo não é uma estratégia eficaz para tal fim, diálogos como o que associa o aborto a um ritual de sacrifícios pagão exigem do público certo grau de familiaridade com a metafísica¹ cristã para que a discussão seja levada a sério. A estratégia parece ser, na verdade, mostrar a um determinado tipo de cristão a perigosa semelhança de sua religiosidade maleável com a filosofia de um homem materialista — o qual não leva em conta a dimensão espiritual das coisas.


ree

No entanto, algumas falhas técnicas e escolhas narrativas atrapalham o objetivo. Eu não me sinto apta a fazer grandes críticas à atuação de ninguém, mas a falta de carisma do ator que interpreta Dr. Martin é gritante. Sendo justa, as atuações no geral são prejudicadas por personagens caricatos — o psiquiatra é o clássico ateu arrogante, difícil de simpatizar. Em contrapartida, podemos dizer que Sean Patrick Flanery, o qual, a título de curiosidade, interpretou o jovem Indiana Jones na série homônima dos anos 90, carrega o filme nas costas alternando entre o demônio e o possuído com destreza; em alguns momentos, tive a sensação de entrever um enquanto o outro falava.


Ao assistir a uma entrevista com o ator, descobri que os tiques faciais são uma idiossincrasia dele mesmo, porém muito bem incorporada à dualidade que encarna. O possuído Edward, diferentemente do psiquiatra, desperta empatia numa cena angustiante em que pede sua última refeição; ele transborda a aura de uma criança temendo um castigo severo, em contraste absoluto com o sarcasmo e a malícia de Nefarious.


A partir daqui, spoilers.


Eu não entendo por qual motivo os roteiristas não concederam a Edward um final redentor. É compreensível Dr. Martin demonstrar sinais de incredulidade até os últimos minutos, mesmo após viver uma experiência sobrenatural de quase morte, considerando os exemplos de relutância presentes na Bíblia, como do povo de Israel, que questionava a presença de Deus mesmo após testemunhar os milagres no Egito e no deserto. Mas Edward vive um estado de constante tormento; não há um depois que o permita virar as costas para Deus na narrativa. Ora, todo mundo sabe que não existe incrédulo perante o desespero, menos ainda se você está ciente do demônio habitando o seu corpo; reconhecer o diabo equivale a admitir a existência de Deus. Por que então Edward não clama, verbal ou mentalmente, pela intervenção divina para que seja liberto?


Nefarious vai além na decepção ao optar por uma cena derradeira que recorre ao clichê do terror: a entidade maligna não foi completamente derrotada e retorna para reivindicar sua vítima (aqui me refiro a Dr. Martin). É possível supor que os roteiristas pretendiam mostrar as consequências de uma fé vacilante conforme o princípio de Mateus 12:43-46²; contudo, um fechamento ruim mina a força do enredo e distrai o espectador de uma mensagem que poderia ter sido transmitida de maneira mais impactante.


ree

Mas, como já ouvi dizer, o final da história é sempre uma pedra no sapato do escritor. Eu já deveria ter me acostumado. A qualidade da trama é decrescente, porém isso não faz de Nefarious um filme descartável. Apesar de suas falhas, ele tem algo importante a dizer, principalmente a quem negocia verdades bíblicas com o relativismo da pós-modernidade. A ideia carece de ajustes; de uma execução mais à altura do relevante assunto. Quem sabe, daqui alguns anos, surja uma versão aprimorada?



¹Campo da filosofia que estuda a natureza fundamental da realidade.

²43 Quando o espírito imundo sai do homem, anda por lugares áridos procurando repouso, porém não encontra. 44 Por isso, diz: Voltarei para minha casa donde saí. E, tendo voltado, a encontra vazia, varrida e ornamentada. 45 Então, vai e leva consigo outros sete espíritos, piores do que ele, e, entrando, habitam ali; e o último estado daquele homem torna-se pior do que o primeiro. Assim também acontecerá a esta geração perversa (ARA).



 
 
 

Comentários


bottom of page