top of page
Buscar

Aposta de clássico para tiktokers - resenha de Ilíada

  • carolinavanri
  • 23 de fev.
  • 6 min de leitura

Atualizado: 23 de fev.

Cena da série de comédia americana Daria. A protagonista tenta convencer a irmã a ler Ilíada.
Cena da série de comédia americana Daria. A protagonista tenta convencer a irmã a ler Ilíada.

Há um tempo venho sendo importunada por uma pressão de origem desconhecida para ler os grandes clássicos filosóficos. No entanto, uma vez ouvi alguém inteligente dizer que é necessário primeiro conhecer a literatura grega para depois iniciar Platão e afins. Faz sentido, pois a teoria é mais tangível se você conhece antes o pano de fundo que a permeia. Eu já tinha sido apresentada a peças de Eurípides e Ésquilo na faculdade; contudo, até novembro do ano passado, ainda estava em dívida com as epopeias de Homero — imagine ir ao cinema em 2026 assistir à adaptação de Odisseia, do Christopher Nolan, sem poder reclamar de todas as possíveis incongruências —. Então, assim que terminei Ilíada, me permiti iniciar Crátilo, de Platão, o registro de estudo sobre linguagem mais antigo do Ocidente, e logo me deparei com uma referência à epopeia bélica.


Em Crátilo, o pensador Sócrates investiga com seu amigo Hermógenes a origem dos nomes e se há um modo certo de associar coisas a palavras. Distanciando-se um pouco da perspectiva convencionalista, ele menciona o episódio de Ilíada em que Hefesto literalmente luta contra o rio Escamandro — assim chamado pelos mortais, mas denominado “Xanto” pelos deuses. É lógico presumir que a designação divina reflete uma compreensão mais profunda da realidade; portanto, mais correta. Dessa forma, Sócrates recorre a Homero para demonstrar que os nomes não devem ser arbitrários. Honestamente, a discussão teria continuado inteligível do mesmo jeito, mas quem não ama o prazer de já estar familiarizado com uma citação?

Contextualizando, A Fúria de Aquiles, ou simplesmente Ilíada, é um poema épico tecido com mais de 15.000 versos, por volta de 700 a. C., ambientado no décimo e último ano da Guerra de Troia. Do ponto de vista histórico, não há certeza de que a batalha de Ílion de fato ocorreu, muito menos da maneira como Homero a descreve. O valor historiográfico da obra reside, em grande parte, no retrato das estruturas sociais e domésticas antigas, incluindo o modo de se relacionar dos gregos com suas divindades — é interessante ver a Grécia mítica através da perspectiva dos próprios antigos, sem ser pelos olhos de um semideus de doze anos do século XXI —.

Segundo Homero, a guerra surge em consequência do rapto de Helena por Páris, príncipe de Troia. Então Agamêmnon, rei dos aqueus (gregos), lidera-os no cerco da cidade troiana a fim de vingar seu irmão Menelau, quem teve a esposa roubada. No décimo ano de guerra, como se o conflito já não fosse inconveniente o bastante, Agamêmnon ainda se apropria de Briseida, escrava e espólio de guerra de Aquiles, provocando a cólera do guerreiro mais habilidoso dos aqueus e consequentemente sua ausência durante boa parte da batalha. Enquanto isso, o Olimpo não se abstém de tomar partido, interferindo nos duelos muitas vezes para ajudar seus favoritos.


Pintura A abdução de Helena, por Guido Reni (1629)
Pintura A abdução de Helena, por Guido Reni (1629)

Como alguém que sempre ouviu a história de Ilíada desatentamente, iniciei a leitura quase zerada e me surpreendi ao encontrar, além do drama, uma narrativa dinâmica com descrições de lutas rápidas e cenas de alívio cômico protagonizadas pelos deuses. A exemplo, no Canto XIV, Hera seduz Zeus para o distrair e conseguir favorecer o lado grego na batalha. Atraído pela beleza anormal da esposa, Zeus corresponde aos seus encantos proferindo uma cantada nada convencional:

“[...] desta maneira nunca o desejo de deusa ou mulher me subjugou ao derramar-se sobre o coração no meu peito, nem quando me apaixonei pela esposa de Ixíon, que deu à luz Pirítoo, igual dos deuses no conselho; nem por Dânae dos belos tornozelos, filha de Acrísio, que deu à luz Perseu, o mais valente dos homens; nem pela filha do famigerado Fênix, que me deu como filhos Minos e o divino Radamanto; nem por Sêmele ou Alcmena em Tebas, esta que deu à luz Héracles, seu filho magnânimo, ao passo que Sêmele deu à luz Dioniso, alegria dos mortais; nem pela soberana Deméter das belas tranças; nem pela gloriosa Leto — e nem mesmo por ti própria me apaixonei como agora te amo, dominado pelo doce desejo.”

Quem diria que listar à sua esposa todas (?) as mulheres com quem a traiu seria um jeito de levá-la para a cama?

Se pensarmos bem, é natural que haja situações bem-humoradas entre os deuses, considerando que o panteão grego, antes de tudo, constitui uma família e, sendo assim, não está isento das interações jocosas do vínculo parentesco. Na introdução ao clássico, presente na edição da Penguin Companhia, o editor E. V. Rieu explica que tais passagens não devem ser interpretadas como irreverência de Homero para com os deuses, pois “o elemento cômico só é introduzido nas ocasiões em que os deuses aparecem juntos, em ação solidária ou hostil. No trato com os seres humanos, cada qual na sua qualidade, eles estão longe de ser divertidos. [...] [Homero] sente com toda a razão que seria artificial fazer com que aquelas criaturas formidáveis se levassem mutuamente a sério como ele leva cada uma delas.”

Há quem leia Ilíada e ache isso tudo muito desinteressante, mas gosto de pensar que se trata de uma avaliação mais pautada pela acessibilidade do texto de que se dispõe. A tradução amigável que aqui apresento pertence a Frederico Lourenço. Apesar da disposição em versos, Lourenço optou por não seguir uma métrica rígida, privilegiando um ritmo mais próximo da prosa, mas sem que se perdesse a melodia. A leitura em voz alta é altamente recomendável, pelo menos de algumas páginas, para que se sinta a força do épico. A título de ilustração, trago também a indignação de Heitor perante o egoísmo do irmão Páris no Canto III:

"Páris devasso, nobre guerreiro somente na cuidada aparência, desvairado por mulheres e bajulador! Quem dera que não tivesses nunca nascido, ou que tivesses morrido sem teres casado! Isso quereria eu, pois seria melhor assim, em vez de seres para todos motivo de censura e desprezo. Na verdade rir-se-ão os Aqueus de longos cabelos, ao pensarem que combates na linha da frente porque és belo de corpo, a despeito de te faltar força de espírito e coragem. Foi assim que partiste nas naus preparadas para o alto-mar, navegando o mar depois de reunidos os fiéis companheiros, e ao chegares a um povo estrangeiro trouxeste uma mulher bela de terra longínqua, nora de homens lanceiros, como grande flagelo para teu pai, para a cidade e para todo o povo, mas para regozijo dos teus inimigos e para tua vergonha? [...] Mas os Troianos são mesmo uns covardes: se assim não fosse, terias sido já apedrejado por causa do mal que praticaste."

Páris é um personagem detestável (adianto que o todo poderoso Aquiles também é) e merece as mais ofensivas palavras.

A diversidade de gêneros narrativos (ação, comédia, drama) me fez questionar se Ilíada não seria capaz de prender a atenção até mesmo de um usuário do TikTok com o cérebro carcomido. A mistura de tons distintos ao longo da trama é uma estratégia comum usada nas séries coreanos para atrair jovens. A popular série Goblin, que mistura romance, drama, humor e fantasia, é um exemplo disso. Em Ilíada, há ainda a diversidade de temas, como luto, orgulho, vingança, heroísmo, destino x livre-arbítrio e até amizade, notadamente na relação de Aquiles e Pátroclo, que inclusive leva alguns leitores a especularem um afeto homossexual entre os dois.

Outro fator que pode cativar esse público é o uso da técnica literária “in medias res”: a história começa direto ao ponto, no meio da ação, com o anúncio de que Apolo espalhou uma doença terrível entre o exército aqueu, porque Agamêmnon recusou devolver Criseida ao pai dela, apesar dos apelos e da oferta de resgate. Para aplacar a ira do deus, Agamêmnon é forçado a abrir mão da jovem, mas, em retaliação, exige Briseida, espólio de guerra de Aquiles, como compensação¹. Daí se origina a cólera de Aquiles, que se sente desonrado ao perder “Briseida de lindo rosto”; ao ser tratado como um guerreiro qualquer, sem o devido reconhecimento por seus méritos.

Pintura A fúria de Aquiles pela perda de Briseida, de Domenico Cunego (1727 - 1794) após Gavin Hamilton (1723-1798). 
Pintura A fúria de Aquiles pela perda de Briseida, de Domenico Cunego (1727 - 1794) após Gavin Hamilton (1723-1798). 

Em conclusão, Ilíada é tão rica em emoções humanas que penso ser capaz, sim, de fazer um TikToker se apaixonar pelo poema como eu me apaixonei, principalmente se já introduzido à mitologia grega através de narrativas contemporâneas como Percy Jackson. Mas claro que é sempre necessário o mínimo de esforço da parte do leitor. Creio ter dado mais de um bom motivo para se ler a obra.


Até tentei fazer de Ilíada uma leitura de cabeceira, mas não foi uma boa ideia; deixou minha mente mais agitada do que o normal; passei a noite sendo assombrada por ecos do mundo helênico — embora minha rua seja barulhenta, clangor de espadas não é um som comum por aqui.


¹A condição das mulheres em Ilíada renderia uma discussão à parte. Por ora, limito-me a dizer que é possível encarar isso de modo a valorizar o registro histórico da época e usar como ponto de partida para debater a condição feminina no mundo.

 
 
 

Comentários


bottom of page